11/30/2011

Mesa Posta (2003)

Abóbora, pimentão,
pimenta-do-reino, batatas sobre a mesa.
Oil, pepper, sugar.
Frascos em língua inglesa.
Olho para a toalha sobre a qual como
e só me resta a cruel incerteza:
Eu comprei tomate?

11/29/2011

Minha Mão Esquerda (2001)

Não quero mais escrever poesia

Não quero mais escrever poesia.
A risada não se explica
O sorriso não pede expressão
A luz, que aquece mesmo as madrugadas
é sentida na pele, e a pele, no toque
e o toque, em vão.

Em vão?
Jamais!
Aqui fico com o poeta:
porque a vida só se dá a quem a ela se deu

E a escrita, pois?
A escrita está cá para quem dela precisa
Amiga fiel, das horas tristes,
exprime o sentido da confusão,
Ou o que foi, só, sentido.

Não, a risada não quer palavras.

Mas a risada, amiga alegre,
é instável, fugidia
Desaparece no mesmo raio em que veio
E eu, que não mais quero,
Fico cá a escrever poesia.

11/28/2011

Lânguida (2010)

No pequeno escritório escuro de quarto andar ainda ouve-se a rua, que por sua vez ignora o que aqui se passa. De fato, não passa nada. A noite já longa revela pouco mais que a fumaça do cinzeiro e, por trás dela, o rosto cansado do homem que revira as cinzas como quem revira o resto de um passado que não se permite morrer.

Quem era afinal a pessoa que procurava? Por certo buscava alguém, era isso que as muitas fotos em preto-e-branco mostravam. Momentos no tempo, testemunhos de atos de amor, vidas alheias roubadas pela câmera inquisidora. Pareciam felizes, apesar de algo estranho transparecer. As fotografias capturavam tudo, todos os pequenos toques, carícias, abraços e mesmo as curiosas e freqüentes mordidas que os amantes pareciam gostar de trocar, mas nunca fixaram nos negativos o rosto daquela mulher.

Detetive, afinal, era o que dizia o letreiro fixado ao vidro da velha porta. DETE IVE, na verdade, sinal dos anos de desleixo que deixaram suas marcas também no piso gasto e na mesa manchada de cinza claro, testemunho de incontáveis cigarros. Os olhos, vermelhos, fatigados, consolados pelo eterno copo de scotch, pareciam percorrer cada anotação, registro ou detalhe de um caso que, daquela forma, à meia luz, era ainda mais insolúvel. Sua cliente o exigia – precisava, a todo custo - saber quem era a responsável pelo fim abrupto da sua felicidade; fora trocada por outra, mas que outra? Ele, por sua vez, precisava de dinheiro. Quando daria, por fim, um nome ao pesadelo louro das fotos, essa rompedora de noivados?

Ouviu passos no corredor. O distinto ruído do encontro do bico fino de um salto alto com o velho assoalho do edifício já centenário. Algo inesperado àquela hora da madrugada, não costumava receber visitas, nem mesmo de dia e, a julgar pelo amarrotado de sua camisa, algum tempo passara desde a última vez que se preocupara em encontrar alguém. O trabalho de investigação é muito solitário.

O ruído crescia, porém sem pressa, como o caminhar tranqüilo de quem não carrega qualquer temor. Lentamente definia-se o contorno de um corpo jovem, cintura fina, tomada como que por um abraço apaixonado pelo vestido que no escuro escondia seu encarnado, mas uma vez à luz da entrada, era vermelho como nunca o fora nem mesmo a mais insidiosa sedução. Lânguida.

Com o soar da campainha, ele, atônito com tão surreal intervenção, tirou os pés de cima da mesa, largou o cigarro, a bebida – por aquele corpo, largaria qualquer coisa – pôs-se de pé e, num momento de hesitação, apertou o frouxo nó da gravata negra. Com um pigarro preparou a voz para a fala calculada, planejada. Ao abrir a porta, disse com o melhor tom permitido por sua língua presa:
- Posso ajudar?

Sem resposta. A não ser por um breve sorriso, de lábios nervosos, como que segurando o riso e, ao mesmo tempo, prestes soltá-los no ar. Seus olhos, azuis, puseram-se a penetrar os dele, buscando fundo pela fonte de tal idéia. Ora, oferecer-se para ajudar, assim de madrugada. Quem seria tão ingênuo? Ele, insatisfeito e pasmo pelo silêncio, inquiriu:
- Mulher, posso ajudar?

Gargalhadas! Incontidas gargalhadas tomaram conta da pequena sala. Aquela mulher, lânguida, sensual, zombava de seus esforços e de suas maneiras. Qual seria a razão de tal insulto? Quem era ela? Pelos cabelos dourados e o inusitado da aparição, seria a tão misteriosa amante, em busca de alguma vingança ou reparação? Sim, poderia ser ela, mas não conhecia seu rosto, não podia reconhecê-la pelas falhas imagens capturadas. Intrigado, perguntou:
- Posso ajudar?

O riso explodia sem medida pelo rosto da misteriosa visitante. A boca aberta com todos os dentes à mostra, gozando aquilo que parecia a coisa mais engraçada do mundo. A rua, já silenciosa, escutava-os de longe, no deleite daquele corpo que, sem controle, mal cabia em seu justo vestido rubro.
A situação ganhava contornos absurdos. Que tipo de delírio era aquele? Ele não sabia como reagir, incrédulo, àquela aparição sedutora e zombeteira. Era linda, pois certo, estonteante, talvez, mas o que o mantinha hipnotizado era aquela ruidosa loucura. O que fazer? Preocupado, proferiu:
- Posso ajudar?

Sem resultado. A histeria continuava, nela, os globos oculares vertiam lágrimas de prazer pelo riso infinito. Retorcia-se. Soltou os cabelos que insanamente voavam até, em algum momento, encontrarem o rosto do seu interlocutor. Chicoteavam-lhe a cara, machucavam-lhe as pálpebras, tomavam de assalto cada espaço disponível. Dançavam como raios louros nos ar. O transe insano, possuído, assustava aquele homem, cujos anos de carreira a escrutinar as mais intimas depravações humanas não o haviam preparado para lidar com tal descontrole. Mulher lânguida. Mulher insana. Mulher risonha. Mulher...

Quem era aquela mulher? Por Deus do céu, quem era aquela mulher? Não importava o que pensasse, não podia entender o que estava acontecendo. De onde surgira tal sonho, ou pesadelo? De que história absurda era ele personagem? O que era aquilo? Transtornado, assoberbado pela dúvida, não foi outra sua atitude:
- Mulher... posso ajudar?

Ela parou de rir. Suas expressões mudaram. Agora, séria, fixa naquele objeto assustado que insistia em considerar-se um homem. Com um gesto súbito, jogou-o contra a parede, com força. O impacto ecoou pelos andares. Perdendo o ar, ele não reagiu. Observou apavorado a sua aproximação, viu segurar-lhe os braços, prestes a possuí-lo. Por um segundo abençoou tal surpresa. Ela era lânguida, sensual... A tensão tomou conta de seus membros, um vazio tomou-lhe o estômago, correntes elétricas percorriam-lhe a espinha. O ataque, iminente.

Ela o mordeu.

A marca de dentes cravados no braço não permitia esconder o estranho intento daquela criatura. Mantendo-o cativo, seu corpo a pressionar o dele, ela o mordeu. Voltou a rir, somente para escutá-lo dizer:
- Posso ajudar?

Seu punho cativo não o permitia defender-se, sua mente girava em busca de respostas e não encontrava senão o pavor de ver-se domado, indefeso, vítima de mordidas constantes; só via o medo, o medo, o medo! O que era aquilo? Quem era essa mulher? Por que ela o mordia, concedendo tréguas somente para ter tempo de voltar a gargalhar? O desespero tomou-lhe conta:
- Posso ajudar? Mulher... posso ajudar?

Mas as mordidas não cessavam. Ela não queria ajuda, mas sim mordê-lo, por todo o braço, as mãos, os ombros, a barriga e, ao tê-lo torcido, mordeu-lhe também as costas, estas com especial prazer. E ria alegre, ruidosa, para então voltar a mordê-lo. Já arrancava-lhe o sangue pelas marcas dos caninos vorazes. Não era uma vampira, mas como sugava-lhe a vida... Qual não era o gozo em apertar os dentes contra aquele homem indefeso, exausto, que não respondia senão:
- Posso ajudar?

O sangue corria pelas pernas, manchava a camisa branca e o velho sapato do detetive assaltado por tão sensual criatura demoníaca. Fincava os dentes cada vez mais forte, cada vez mais profundo. Feria-o irreversivelmente. A convulsiva resistência que tentava opor era inútil. A cada segundo debilitava-se. Pensava que ia morrer e, apavorado, questionou:
- Mulher, posso ajudar?

Seu rosto ficou pálido, suas mãos, trêmulas. A cada mordida um pouco de vida ia embora. As forças já faltavam àquele trapo humano, cujos joelhos dobravam em agonia, levando-o finalmente ao chão. Caído, prestes a perder a consciência, olhou para o alto. Num último suspiro, suplicou:
- Mulher... você pode me ajudar?

11/27/2011

O curioso é que as palavras são as mesmas

O curioso é que as palavras são as mesmas

Se a vida fosse uma coleção de retratos falados,
Haveria progressão, ou ao menos mudança.
Se a vida fosse uma lista de experiências,
Haveria novidades, ou ao menos lições.

Se descrevesse teus braços, envoltos em meu peito como laço de presente,
Contaria em diferentes números teus sinais, ou mesmo sua extensão.
Se contasse o tom de tua pele, ou a cor de teus olhos, fitando-me intensamente,
De diferentes metáforas formaria meus relatos.

Se escrevesse de nossos beijos e com qual verdade nos amamos,
Diria de vidas diferentes, sem nexo ou ligação.
Se relatasse os encontros e desencontros de nosso pensar,
Não haveria sequer possibilidade de comparação.

Mas o curioso é que as palavras são as mesmas.

Quando o vazio se instala,
As palavras são as mesmas.
Quando a carne esfria,
As palavras são as mesmas.
Quando o adeus se dá,
As palavras são as mesmas.

Quando não restam mais que uma lembrança e braços órfãos de teu corpo,
O curioso é que as palavras são as mesmas
Quando a saudade é o rastro mais forte deixado por um amor,
Não há o que inventar.
O curioso é que as palavras são as mesmas.

Aninha

Aninha

Aninha era perfeita. Com aquele toque de pele fresco que só uma mulher tem, ela recostaria suas costas em meu peito para assistir um filme, com seu braço direito levantado fazendo-me cafuné, enquanto eu passaria as mãos por sua barriga. Eu gosto de acariciar seu abdômen, ela gosta de beijos no pescoço. Eu gosto de correr a ponta de meu nariz por trás de sua orelha, pelos finos fios que escapam de um frouxo coque. Ela não lavou o cabelo hoje, mas não importa. Em sua blusa de cashmere azul claro, com um decote que revela quase até os ombros, ela está linda e eu lhe beijo o pescoço.

Mas Aninha queria ver o filme. Gostava de Errol Flynn, Gary Cooper, era de outra época. Sabia qual era em technicolor ou em kodachrome, mas isso era eu que lhe dizia. Seria uma mania minha, falar sobre filmes antigos, mas ela achava aquilo o máximo. Eu tinha que sussurrar em seus ouvidos, não mais que um breve comentário. Aninha queria ver o filme. Disse que vai usar as cores com inspiração seu próximo projeto, os jogos de luzes, aquela estética, aqueles heróis, aquele mundo. Ela havia explicado os conceitos que usaria, mas confesso que não entendi direito. Muita semiótica e palavras assim. Tinha prazer de escutar sua voz que ainda lembrava a menina sapeca que fora. Eu também queria ver o filme, mas não importa. Em sua blusa de cashmere azul claro, com um decote que revela quase até os ombros, ela está linda e eu lhe beijo o pescoço.

Aninha era perfeita. Usava meia-calça e sapatilhas pretas. Saia curta, negra, e blusa de cashmere. Seu corpo encaixava no meu. Poderia ficar horas protegida em meu peito, deitada como um bebê em meus braços, a ver televisão. Só levantaria para fazer pipoca. Ela gosta de pipoca. Não, Aninha, deixa que eu faço pra você! Fica aqui deitadinha que eu já volto. Mas ela não deixava, insistia em fazer ela mesma. Não gostava de muito sal. Voltava com a tigela cheia, encostava seu corpo no meu, confortável em meus braços, para ver o filme. Ficaríamos assim, por horas. Quentes um no outro, esquecíamos do vento lá fora. Quando o filme acabasse, ela esticaria seus braços, a se espreguiçar. Esfregava sua cabeça em mim, por provocação. Ao virar-se, olharia fundo em meus olhos e, com um leve sorriso, percorreria gentilmente meu rosto com a ponta de seu nariz até fixar-se em minha boca. Com seus lábios beijaria os meus, devagar, para aproveitar cada segundo. Com meu lábios percorri os seus, detidamente. Desci ao queixo, para acariciá-lo, e continuei. Em sua blusa de cashmere azul claro, com um decote que revela quase até os ombros, ela está linda e eu lhe beijo o pescoço.

Aninha era perfeita.